A Influência de Joaquim de Flora em Portugal e na Europa
A Influência de Joaquim de Flora em Portugal e na Europa
Contêm em anexo os escritos de Natália Correia sobre a Utopia Feminina da Idade do Espírito Santo.
PARA UMA «NOVA IDADE NO MUNDO»*
A Influência de Joaquim de Flora em Portugal e na Europa, obra recentemente
publicada (2005, Roma Editora) por José Eduardo Franco e José
Augusto Mourão (professores na Universidade Nova de Lisboa) é
um dos mais importantes contributos para o estudo do pensamento teológico
e político na Idade Média. De facto, Joaquim de Flora (1130/35-1202),
teólogo contemplativo da Ordem de Cluny, foi um dos mais influentes espíritos
do século que marcou o nascimento da figura do intelectual e das universidades.
A originalidade dos seus escritos deve-se sobretudo à preeminência
que dá no livro Concordia Nova ao Espírito Santo, relativamente
ao Pai (Idade dos Anciãos) e a Jesus Cristo (Idade dos Jovens). As duas
primeiras idades correspondiam aos tempos primordiais da humanidade e à
era de Cristo. Este ponto de vista transgredia a concepção comummente
aceite de que o Génesis bíblico correspondia a um Paraíso
terrestre em que o homem e a mulher (Adão e Eva) tinham sido perfeitos
e, por isso, felizes, até à queda pecaminosa que os fizera perder
a pureza que era própria da sua grande espiritualidade.
Ao longo dos tempos, o Homem teria decaído cada vez mais, tornar-se-ía
mais rebelde à obediência ao Pai e acabaria por terminar o seu
caminho na Terra com um terrível apocalipse que castigaria implacavelmente
os pecadores e daria a recompensa aos eleitos ou puros de coração
(Bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus,
Mat.5, 8). Este final de caminho em descida em vez de ascensão, perturbava
demais a sensibilidade de Joaquim de Flora. Como conciliar a história
da salvação cristã com esta evolução progressiva
rumo ao pecado em vez de ser uma via da perfeição, ou seja, da
virtude? Na verdade, a espiritualidade constitui para Joaquim de Flora o cerne
da perfeição humana, o ponto em que o ser humano toca mais de
perto a perfeição do Pai («Sede perfeitos como meu Pai é
perfeito», disse Jesus), e o único que garante a toda a humanidade
um caminho de salvação e não de perdição.
Segundo o abade do mosteiro de S. João de Fiore, a evolução
da humanidade processa-se, com um lento, mas progressivo aperfeiçoamento
da conduta humana. A Idade do Pai, o Deus judaico (Antigo testamento), respeitava
ainda a uma época de trevas, de ignorância e de barbarismo, de
grandes pecados da carne, cuja punição era, desde logo, exercida
pelo Pai. Essa precedência do mal leva-o a colocar a Idade do Espírito
Santo como a última idade da evolução humana e, precisamente,
a coincidir com a vitória dos puros ou espirituais (Idade das Crianças).
Autor de uma obra que se antecipou a algumas teorias filosóficas futuras,
rejeitou, designadamente, a cruzada armada contra o Infiel, o desprezo pelo
espírito de pobreza e as concepções de índole apocalíptica
e milenarista com que a Bíblia era interpretada pela Igreja.
As perspectivas filosóficas milenaristas, segundo as quais o mundo teria
de acabar no fim de um milénio, constituíram o principal motivo
de o abade de Flora procurar fazer uma reforma da leitura do Livro sacro. Uma
das mais influentes teorias monásticas sobre a evolução
da humanidade formulada sobre a tríade das Idades do mundo, surgia, assim,
para contrariar as análises da Bíblia propagadas pelo Papa e,
em consequência pelos teólogos da Igreja.
A Influência de Joaquim de Flora em Portugal e na Europa, obra conjunta
de José Augusto Mourão e José Eduardo Franco é um
valioso contributo para o conhecimento mais aprofundado da importância
do pensamento deste monge contemplativo e das suas repercussões na Europa
dos séculos subsequentes.
Até aos nossos dias a teoria da Idade (final) do Espírito Santo
tem tido adeptos entre teólogos, filósofos e poetas. Na Itália
do século XIV, Dante compôs a Divina Comédia «tirando
consequências escatológicas bem concretas do edifício profético
assente na doutrina das Três Idades» (p.77). Na verdade, há
um esquema Joaquimita, quando Dante faz a narrativa processando-se desde o Inferno
(1º Livro) até ao Paraíso (3º Livro), com o estado intermédio
do Purgatório (2º Livro).
No século XIX, o filósofo Fichte haveria de dizer que vivendo
nós na “era da perversidade total, tudo leva a pensar que esta
antecederá o tempo da regeneração” (p.89). Os autores
referem-se igualmente à sua influência em Lessing, porque «concebe
a Terceira Idade como o futuro reino da razão, da realização
humana perfeita e da consumação dos ideais do Cristianismo»
(p.88). Além disso, neste filósofo alemão abundam as «referências
a S. João e ao Eterno Evangelho do Apocalipse» (p.91). A palavra
escrita de Joaquim de Flora também não passou despercebida a Augusto
Conte, quando dividiu a evolução histórica da humanidade
em três estádios: estádio teológico, estádio
metafísico e estádio positivo ou científico. Este último
estádio corresponde à Idade do Espírito Santo numa «manifesta
extrapolação do numinoso para o âmbito do domínio
terrestre» (p.88).
A prevalência do espírito de Joaquim de Flora no nosso tempo é
salientado, de igual modo, ao referir-se a estrutura da obra romanesca O Nome
da Rosa do italiano Umberto Eco e o ensaio filosófico de Giorgio Agamben,
destacando uma passagem de Le temps qui reste (Paris, Rivages, 2000): “Toda
a modernidade está empenhada num corpo-a-corpo hermenêutico com
o messiânico”. E conclui-se: «A linguagem messiânica
tem de ser pensada hoje como a tradução (...) de uma atmosfera
psicopolítica e psicoreligiosa» (p.90).
Muitos outros autores sobre quem incidiu a luz espiritual de Joaquim de Flora
são referidos neste interessante ensaio de José Eduardo Franco
e José Augusto Mourão. Referimo-nos, designadamente, às
importantes repercussões do pensamento joaquimita em Fernando Pessoa,
Agostinho da Silva e Natália Correia.
Também o movimento «New Age» e a expansão da cibercultura
não podem desinserir-se da espiritualidade da Concordia Nova. Esta «concórdia»
preconiza «a vinda de tempos novos»; por outro lado, como se sublinha,
a «questão de fundo é a reforma e a conversão permanente»
(p.84).
O mundo pode converter-se à perfeição. Esta está
ao alcance do Homem. Não é uma utopia. Uma impossibilidade. É
uma conquista. Uma vitória sobre as forças diabólicas que
arruinam a esperança e desencadeiam a revolta. Aqueles que amam a paz
não abdicarão de seguir por aí. Os puros de coração
não despertarão só quando forem espezinhados pelos que
nada têm de comum com eles.
O mundo do abade Joaquim de Flora é portador de uma mensagem que não
pode ser esquecida, muito especialmente, nos nossos dias. Uma abertura absoluta
a todas as correntes é benéfica, mas há que salvaguardar
as inspiradas no Espírito Santo da Revelação, sob pena
de infidelidade aos princípios em que se acredita. Se os tempos antigos
cometeram erros, não se deve pensar que a cultura de massas contemporânea
está imune a outros erros não menos graves. A intolerância
para com as correntes espiritualistas, especificamente no universo cultural
português, não abona em favor das correntes materialistas, antes
as reduz a um comportamento intransigente e dogmático, idêntico
àquele que elas condenam com tanta veemência!
A Idade da Perfeição ou do Espírito Santo não está
num paraíso distante, mas num paraíso que está à
mão da humanidade construir e que é, acima de tudo, uma escada
ascendente que é preciso subir degrau a degrau até atingir o ponto
mais alto. Para o alcançar, há que vencer o desalento e conquistar
a esperança, alicerce de todas as vitórias: «a originalidade
de Joaquim de Flora assenta na ideia da história como progresso, na compreensão
da revelação e no conhecimento de Deus, na existência de
uma terceira idade, idade da esperança e o anúncio de um reparator
que prepara a vinda dos novos tempos» (p. 137).
Neste contexto, quem nos garante que o ciberespaço não virá
a ser ainda um instrumento provocador, uma impressão digital incisiva
ou um veículo dinamizador do caminho para a progressiva reconversão
espiritual da sociedade humana? Uma nova ordem foi fundada por Joaquim de Flora
no século XII (em 1196 uma Bula papal autoriza-o a fundação
de um mosteiro sob a invocação de S. João Evangelista e
do Espírito Santo). Também no século XXI uma nova ordem
terá de ser lançada na conquista do aperfeiçoamento humano
até ao triunfo do ideal formulado pelo Cristo que o teólogo de
Flora não desfigura. Antes, é a pedra angular sobre a qual se
erguerá a mística Idade do Espírito Santo. No aperfeiçoamento
moral da sociedade humana assentará a “Lei Nova” (p.138).
Na Conclusão de A Influência de Joaquim de Flora em Portugal e
na Europa escreve-se: «um abade de província transformou-se em
profeta das “novas equipas” em meio urbano e um exegeta ortodoxo,
submisso aos Papas, tornou-se o pai espiritual de inúmeras “rebeliões
selvagens”, suspeito de heresia (...) Joaquim alimentou todos os “apocalipses
de facções”, servindo os movimentos mais contrários:
desde Espirituais franciscanos, seguidores de David Joris, seitas iluministas,
rosacrucianos, maçónicos, aos templários» (p.139).
Um espírito iluminado, Joaquim de Flora caminhou na via sacra da perfeição
rumo à almejada Idade do Espírito Santo.
Teresa Ferrer Passos